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Últimos momentos

Gostaria, ainda que morto, saber quem foi que inventou que defunto gosta flor, esse cheiro está me deixando nauseado, é provável que se não estivesse morto sofreria na próxima semana da minha enxaqueca costumaz.

Por quê não me cercaram de calcinhas, isso sim seria maravilhoso, ficar aqui e apodrecer imerso em parte substancial do que em vida foi a sacies constante ao meu desejo carnal. Sim, fui um homem pouco dado as afeições, e isso pouco importa agora, ao menos penso eu aqui deitado em meio aos lírios. Confesso que tais pensamentos fazem com que eu sinta em meu corpo gélido um breve aquecer. Saudades de Aurora, Hortência, Margarida e Violeta, flores que me faltam no agora.

E essa choradeira o que será que representa? Será que eu fui tão querido assim? Devo confessar que as lágrimas derramadas sobre este que vos fala estão mais para obrigação de uma noite de velório. Seriam elas choradeiras contratadas para acalentar aqueles que aqui, como eu, não sentem nada? Nunca saberei, talvez.

Não quero parecer ingrato, acredito de fato que muitos dos presentes estejam sentindo alguma rala tristeza pela minha súbita partida. Melhor pouco do que nada, diria Godó, o simpático guardador de carros do meu bairro.

O que me deixa assim rabugento e pouco afeito ao júbilo tardio está na materialidade desta minha partida. É desestimulante permanecer aqui parado, deitado em minha repugnância pós morte sem se quer poder abrir os olhos, encarar os outros e me expressar. Em vida tampouco o fiz.

Procuro acompanhar o que se passa pela escassa luz que adentra meu interior através dos espaços vagos existentes em meus cílios imbricados.

O som flui claro e alto em meus ouvidos. Sei exatamente aqueles que se aproximam do meu ataúde e distingo a mais sutil lamuria proferida por essas bocas descuidadas. Coitado, foi tão jovem; Deus sabe o que faz; Parece que está dormindo; Deve estar juntos aos seus agora.

A pouco reconheci a melodia presente na voz de uma antiga namorada, em verdade não foi bem um romance formalizado, apenas mais um platonismo a improvável amada que um dia nesse coração fraco se abrigou.

Fui, eu acho, muito apaixonado por essa moça que agora toca minha mão fria, porém ela foi por outro, e se vale ainda nesta minha pós vida uma breve reflexão, acredito que foi naquele dia de abandono que eu comecei a morrer cada dia um pouco.

Ainda me recordo da dor. Hoje me vem ela com os olhos marejados pedir perdão ao já passado, diz com clareza, ou safadeza tardia, que naquela oportunidade não havia opção. E o que dizer eu agora, se não um já era! Perdeu meu bem, e eu também.

Quando em vida as pessoas pensam saber tudo, o que não sabem inventam e acabam por acreditar que agora detêm a sabedoria plena. O bom de se morrer está no fato de não termos mais compromisso algum com o nada vivo. Somos agora só o um, um único defunto que muito provavelmente terá como companhia em suas últimas horas somente os vermes que de seu corpo podre irão se alimentar.

Isso me traz uma certa felicidade, saber que alguma utilidade poderei eu na partida deixar a este mundo que ainda abriga esse moribundo gozador.

Entrei para a cadeia alimentar destes invertebrados famintos de mim. Percorrerão por instinto os meandros deste corpo que agora jaz aqui quase morto esperando o definitivo sepultar. Não sei se fim.

Sempre acreditei que assistiria ao meu velório do alto, flutuando pela sala, em uma forma astral, extracorpórea, transcendental. Depois seguiria rumo ao paraíso, se por lá fosse aceito e bem-quisto, ou quem sabe rumaria ao inferno se fosse deveras merecido, dizem que nesta hora não cabe a nós decidir o nosso destino, por isso aguardo passivo qual tal um menino obediente à sua mãe.

Por enquanto continuo aqui frio e duro acompanhando tudo passivamente, nada de túnel de luz, escadas celestiais, seres de branco me puxando pelas mãos, tridentes e chamas, apenas a fumaça da vela, o murmúrio eterno e o pólen entrando pelo nariz. Será que fui tão mal que nem mesmo o diabo quis me disputar? Deus estaria me aguardando na periferia do céu? Querubins me levariam rumo ao campo do sorriso eterno, ou demônios me cozeriam no caldeirão do inferno? Não há como saber, resta-me esperar pelo julgamento.

Vejam quem chegou agora na beira de minha cama de madeira. Esse safado só me prejudicou durante o tempo em que trabalhamos juntos lá no Imperial, agora se atreve em comparecer ao meu enterro. Nestas horas que eu gostaria de poder mexer ao menos um dedo, mostraria a ele a minha gratidão pela inesperada visita.

Avaliando bem, é inegável a beleza desta bela rapariga que o acompanha. O rosto me é familiar, mas não consigo recordar de onde a conheço, pelo menos deste ângulo propiciado por meu olhar.

São nessas horas que eu lamento meu estado morto, passivo por pura imposição da rigidez cadavérica, quem sabe não conseguisse atrair os encantos desta linda donzela e ao seu lado viver alguns bons momentos da mais pura perversão. Quem sabe isso aquietasse o rancor que jaz em meu coração parado.

Confesso, daqui onde estou não consigo observar as possibilidades para uma fuga, mas sei bem que basta eu me mexer para todo mundo correr. Essa vidinha de morte tem seus encantos.

Preciso controlar meus pensamentos impuros, vai que eu tenha uma súbita ereção, que coisa mais constrangedora seria a este parco morto, um raminho de crisântemo subindo em riste tal uma varinha de condão.

Devo controlar estas ideias pouco apropriadas a um defunto recém morrido, afinal devo estar sendo avaliado neste exato momento pelo aguerrido tribunal celestial, e não pretendo depor contra a minha já pouca sorte morta.

Engraçado, já faz anos que deixei de fumar e agora que parti daquela para esta, que por enquanto não tem nada de melhor, estou louco por um trago.

Consigo sentir o cheiro da fumaça entrando pelas minhas narinas, um aroma familiar, porém muito distante. Devem estar fumando do lado de fora deste velório, pois aqui por perto sinto claramente o aroma repugnante do incensário.

Um amigo acabou de colocar a bandeira de meu time sobre minhas pernas, o último cobertor de um corpo imerso no frio do rebaixamento. Eu fui fanático por futebol, e agora do que me importa se meu time ganha ou perde, se quem perde no final invariavelmente somos apenas nós próprios.

É! Essa situação de defunto serve mesmo para a meditação, uma autoanálise de tudo o que fiz ou deixei de fazer. Me arrependo de ter negligenciado tantas coisas, entregado ao acaso o que requeria programação, em outras programando o que deveria fazer parte da imprevisibilidade. Erros de vida!

Agora aqui caído me vem à mente que não fui pai, sempre sonhei em ter filhos, mas quando encontrava a mãe ideal, ela por algum motivo, ou não comungava comigo quanto a ideia dos rebentos, ou pior que isso, preferia tê-los com outro alguém. Hoje eu deixo esse mundo sem de fato deixar nada.

Bem, parece chegada a hora, agora só me resta torcer por uma reencarnação, e se isso acontecer prometo a mim viver uma nova vida com um pé na festa e o outro na moderação.

Terei uma dúzia de filhos, ou pensando melhor acho que não, se em dias como os de hoje as coisas já são difíceis, o que dizer em uma improvável reencarnação.

Nunca pensei que morrer fosse tão complicado, vivi pensando em tudo e mesmo após morto continuo nessa mesma toada. Será que nem já defunto eu consigo ficar em repouso e assim seguir o fluxo desta vida desencarnar? Creio que não.

Parece que já vão fechar a tampa, estão todos reunidos em volta de mim agora em oração, quantas lágrimas que nesta hora acabam por respingar as alças de meu humilde, mas lustroso caixão.

Gostaria de poder dizer adeus, afirmar que está tudo bem, que estou do jeito que pedi a Deus, infelizmente a voz me falta. Sigo pálido.

Pelo jeito terminou, estão colocando a tampa e se eu pudesse em um último pedido diria aos meus benevolentes algozes, acendam a luz e não esqueçam o sistema de ventilação.

Melhor esquecer esses pormenores, mal sei o que me aguarda a partir de agora, sem mencionar o fato de que isto aqui balança um bocado reforçando o enjoo já instalado. Seria o balanço resultado do excesso de peso ou decorrente de um piso malcuidado?

Deveria estar mais leve, afinal retiraram tudo de dentro de meu corpo durante a necropsia. Enfim, o pouco que restou de mim agora balança sob o gingado de outras mãos tal qual nos bloquinhos de carnaval.

Ouço ao longe passos acompanhando o meu cortejo, pelo ruído me parece se tratar de uma multidão, realmente eu devia ter sido uma pessoa bem-querida, ou será que se trata dos passos de alguma outra procissão?

Pelo cessar do balançar creio ter chegado ao meu espaço de sepultamento, estou descendo rumo ao infinito, sinto isso. Meu abrigo é meu jazigo, a morada eterna de um ataúde recheado de mim mesmo.

Cheguei ao fundo. Ouço algumas batidas sobre o tampo. Será que é alguém querendo entrar? Regozijo que mesmo morto não tenha perdido o meu sempre presente senso de humor. Risos eternos me aguardem!

Os coveiros já estão completando o trabalho com cheias pazadas de terra, o som vai ficando cada vez mais distante, adeus família, adeus queridos amigos, adeus amadas e enamoradas. Quem sabe a gente se encontre um dia por aí ou por aqui, quem sabe.

Agora já não ouço nada, tudo é escuridão, um silêncio perturbador, ainda não vi o paraíso, tampouco o inferno em fogo, nem mesmo o tal clarão da passagem, apenas essa aterrorizante e indescritível escuridão. Quem me dera ser fantasma e flutuar.

O tempo aqui embaixo parece não passar, já nem sei que dia é hoje, se é noite ou já clareou, o silêncio foi interrompido a pouco, escutei algo como um leve e distante rastejar, em seguida o senti na sola do meu pé, o meu primeiro verme, um novo amigo na breve eternidade. Enfim companhia!

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