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Mosca

Quando abriu os olhos naquela manhã de quarta-feira não imaginaria as desventuras que o aguardavam.

Roberto era um homem respeitado, pelo menos assim imaginava. Executivo em uma grande empresa multinacional, havia ascendido na carreira ainda muito jovem. Um homem alto e de uma beleza cinematográfica.

Era um solteiro convicto, porém, cobiçado pelas mulheres conhecidas e desconhecidas. Ele preferiu o gozo da liberdade conquistada a segurança de relacionamentos duradores. Roberto amava o ato da conquista. Sentia-se embriagado pelo poder que de seu corpo emanava junto ao exclusivo perfume que usava. Não era um caçador de bando, preferia agir só, deixar suas amarras vagarem pelos espaços como tentáculos, prendendo e atraindo suas prezas pelo seu olhar profundo e misterioso. Um sorriso, quase sempre, selava o destino da moça da vez.

Mas aquela manhã lhe trazia algo diferente. Assim que despertou para o novo dia observou o seu reconfortante mundo por meio de outros olhos, de alguma forma havia se transformado em uma mosca.

Seu primeiro voo se deu em espanto rumo ao espelho do closet. Pousou no ombro de um dos ternos, em especifico o de caxemira azul, que ladeado por outros tantos naquele momento estava mais próximo ao grande espelho de cristal onde deixava-se por alguns minutos a admirar o seu corpo atlético nu.

Seu diminuto tamanho frente a imensidão do reflexo dificultava-lhe ver os detalhes de seu novo corpo. Mas estava claro para ele. Havia mesmo se convertido em uma minúscula mosca preta com asas translucidas e grandes olhos avermelhados.

Sua visão, antes compenetrada e intimidadora, agora dividia-se em milhares de subdivisões, o que lhe permitia uma visão em trezentos e sessenta graus do ambiente. O número expressivo de pontos focais, curiosamente, não lhe causava incomodo. Ele conseguia com sua cabeça minúscula de mosca organizar todas as informações. O mundo havia crescido, mas junto dele também a sua capacidade de consumí-lo.

Roberto voa escada abaixo em direção ao segundo piso de seu triplex. Otto, seu buldogue inglês de estimação, dormia no tapete felpudo da sala de televisão. Roberto, agora uma mosca, se aproxima em movimentos ágeis e pousa na orelha direita de Otto. O cão ao sentir a súbita presença de Roberto sacode a orelha direita fazendo com que o intruso volte de súbito a voar. Roberto ainda efetua alguns círculos por sobre o animal que permanece parcialmente adormecido, mas concluí, em desalento, que tal interação não seria nunca mais a mesma.

Segue então em zigue-zague até a cozinha. Pousa no mamão que repousa na fruteira disposta por sobre a bancada de mármore Nero Marquina. Apoia o seu abdômen na casca fria da fruta madura e esfrega agilmente as patas dianteiras. Roberto não entendia exatamente o que estava fazendo, mas o impulso instintivo era mais forte que seu racionalismo costumas.

Enquanto refletia sobre o que faria, um impulso incontrolável faz com que ele alce voo novamente seguindo em direção a lavanderia. Lá chegando, seu minúsculo corpo assume o comando a revelia de seus pensamentos. Otto havia lhe presenteado. O que em outros tempos seria motivo para uma inevitável contestação, naquele momento se postava como inebriante alegria.

Roberto desce certeiro e pousa por sobre os excrementos de seu cachorro. Não sentia asco, sabia do que se tratava, mas de alguma forma aquilo lhe atraia como abelha ao mel. Talvez tivesse dificuldade de explicar sua incontrolável atração, mas pensaria nisso em outra hora, por agora queria apenas desfrutar de sua merecida refeição.

Havia uma perceptível mudança em sua percepção temporal, como se o mundo se passasse em câmera lenta. O relógio do refrigerador marcava 7:40, ou seja, ele estava voando por pelo apartamento há somente vinte minutos, mas era como se uma vida inteira houvesse se passado.

Tal sensação despertou em Roberto um inusitado senso de urgência. Voou até a grande janela da sala, que fechada, impossibilitou que ele se jogasse edifício abaixo. Teve então uma ideia. Aproximou-se da grande porta da entrada e pousou na soleira. Caminhou por debaixo dela rumo a imensidão do agora desconhecido.

Roberto então voou pelas escadas até que de súbito Daniela, a linda vizinha do apartamento quatrocentos e oito, parou de frente a um dos elevadores. Era a sua chance. Pousou na parte de traz da elegante bolsa preta que ela carregava dependurada no ombro esquerdo. Os fechos de metal indicavam a sua procedência. Era uma legítima Prada.

Sentiu-se a mosca mais feliz do mundo. Roberto gostava do luxo e da sofisticação. Viajar naquela bolsa era como uma rendição ao seu estado atual. A porta do elevador se abre, e Daniela caminha para dentro. Pressiona o botão que indicava o segundo subsolo. Ajeita os cabelos no espelho sem notar os olhinhos brilhantes que a vigiam em silêncio. Sai do elevador e caminha até o seu veículo. Uma SUV Audi Q7 vermelha. Roberto não gostou da cor, mas não haveria de escolher a carona. Voou rapidamente para dentro do veículo e assentou-se no carpete abaixo do banco traseiro.

Daniela verificou novamente a sua aparência no espelho retrovisor central antes de dar a partida. O rádio ligou automaticamente. A inconfundível voz de Adele entoava as primeiras palavras da música “Easy on me“. Fácil para mim? Questiona-se ele em franca ironia.

O percurso segue lento. Vez ou outra ele voava pelo luxuoso carro, tomando cuidado para não ser notado pela linda e graciosa Daniela.

Pousado no para-brisa traseiro Roberto contemplava a humanidade que seguia lá fora alheia ao seu drama pessoal. Como ele mesmo havia feito com frequência até a noite passada.

O acelerar e frear do veículo pouco incomodo lhe causava. Moscas não tem vertigem, conclui ele de forma irrefletida.

Daniela chega ao seu primeiro destino, uma badalada padaria onde costumava comer um croissant quente acompanhado de um revigorante café prensado. Roberto voa rapidamente para a bolsa Prada sendo assim carregado clandestinamente por sua nobre acompanhante para dentro da padaria.

A profusão de aromas o deixa excitado. Deveria agir com prudência. Não queria acabar esmagado sobre o balcão lustrado. Enquanto Daniela comia, ele voava. De pão em pão. De doce em doce. Por sobre as cabeças. Embaixo das mesas.

O universo das moscas estava se tornando encantador para ele. Os segredos ouvidos. Os corpos contemplados. Os alimentos elegantemente ingeridos. Naquele dia tudo levaria de alguma forma as suas digitais de mosca faceira.

Após longos momentos de exploração e degustação anônima, ele avista ao longe a jovem Daniela se levantando para partir. Voa rapidamente conseguindo passar pela porta junto a ela. Desce em precisa curvatura buscando por seu esconderijo na bolsa Prada. De súbito, porém, uma sensação incontrolável se apropria de seu corpo alado. Aquele cheiro! Aquele odor que descobriu tanto gostar. Mudou o rumo de seu voo e seguiu a trilha invisível do aroma. Seriam novos excrementos? Seriam latas cheios do mais doce e melequento lixo? Seria ainda uma desejável e putrefata refeição esquecida?

Ao longe avista o seu alvo. Um corpo caído na calçada onde outras colegas moscas já se fartam. Ali havia tudo o que desejava e precisava. Os restos, os excrementos, o lixo, a comida apodrecida. Um corpo ainda quente que dormia guardando a sua inusitada praça de alimentação.

Como ele amava aquilo. Agradecia, em sua pequena consciência de mosca, a sociedade que produzia tamanhas maravilhas. Ele mesmo em sua soberba humana havia possibilitado algumas daquelas enquanto andava por aí, agora, ele voava e usufruía com satisfação do que um dia fez, e que outros ainda faziam.

Continuava a ser o mesmo, apesar de modificado. Ainda preferia caçar só, e isso as moscas fazem muito bem mesmo quando em multidão. Adquiriu um peculiar gosto por seguir corpos, não todos eles, Roberto amava os em que podia morar sem ser enxotado. Não abdicara do luxo que um dia ostentara, em contrário, continuava a mantê-lo por meio da exploração de corpos menos abastados. O que mudou foram as marcas, afinal o requinte da sujeira está em seu simples fato de existir.


Zzzzzzzzzz!

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