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A mulher que esquecia poesias!

Jandira nasceu na pequena Parambu, cidadezinha no interior do Ceará há exatos trinta e oito anos. Da casa azul onde deu o seu primeiro grito para o mundo pouco se lembrava, afinal já vivia o sonho da cidade grande há quase trinta anos.

Mãe de um, esposa de nenhum. A vida não lhe era doce, mas Jandira não desalentava, seguia a lida diária com suntuosa disposição. Costumava caminhar muito, economizava na condução e ainda podia ler o mundo com os próprios olhos, dizia.

Vivia na favela do cipó, onde vielas estreitas serpenteavam por entre as construções irregulares. Casa simples, mas limpa, dizia com orgulho. Coava o café às cinco, saia pontualmente às seis. Trabalhava na limpeza das casas da Dona Joana, Dona Alice, Dona Valdirene. Naquele dia iria limpar a residência de Dona Elena.

Entre a sua casa e o seu destino, pouco mais de quinze quilômetros, os quais cumpriria em duas horas e meia de caminhada. As pernas firmes contrastavam com a face envelhecida. Seguia invisível pelas calçadas, não chamava a atenção, era como um panfleto levado pelo vento.

Jandira fazia pequenas pausas ao longo do caminho. Enfiava a mão em sua sacola de tecido florido e retirava de lá papeizinhos cuidadosamente dobrados. Deixava-os esquecidos em balcões, corpos dormindo nas marquises, nos assentos das paradas de ônibus, nos elevadores e bolsos descuidados. Divertia-se com sua costumeira rebeldia.

Era uma mulher simples, mas não simplória. Mais uma guerreira que neste nosso país vive um dia pelo outro em completo anonimato. Aqueles que cruzavam com ela nas idas e vindas diárias não lhe dirigiam o olhar. Ela, no entanto, sabia que era mais, a muito espalhava pedaços de si pelas ruas da cidade. Seguiria anônima às multidões, mas famosa em suas pequenas ações.

Nos bairros por onde passava ela havia se tornado uma lenda urbana. Curiosos referiam-se a ela como a mulher que esquecia poesias. Ninguém suspeitaria da faxineira andarilha. Ela divertia-se com as falas e teorias daqueles que um dia foram agraciados com seus fragmentos literários. De alguma forma, mesmo pegando a esmo os papeizinhos guardados na bolsa, as mensagens eram certeiras. Trazia sorrisos, conforto, criava uma onda invisível de amor.

Seu José, porteiro do imponente prédio onde morava Dona Elena, certo dia encontrou um. Ali dizia em letra arredondada escrita com uma caneta azul: tendemos a não ver o horizonte, pois ele se esconde por detrás das paredes criadas pelas mãos dos homens. Mas ele está lá no além muro. Permita-se buscá-lo. As jaulas invisíveis também privam a liberdade.

Elza também encontrou um, nele estava escrito: Hoje acordei tristonha, a imagem no espelho me bateu. Entendi que aquilo era o reflexo do mundo, sabia que não era eu. Sorri, tudo se apaziguou, os olhos brilharam, a alma enrijeceu. O espelho trincou, a dor morreu.

Pedrinho, um senhorzinho de corpo frágil que despertava na rua para mais uma manhã em busca da sobrevivência também encontrou. Nele se lia: Às vezes acreditamos no fim, assim nos convertemos em final. Digo, no texto da vida momentos difíceis são frases. Avance, ainda há muito o que se ler.

Jandira, a mulher que esquecia poesias chegava ao seu destino para mais um dia de limpeza. Missão que ela cumprira no caminho, seus papeizinhos limpavam um pouco do mundo a dor.

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